Envelhecer é Opcional

       A senhora da foto não resistiu a uma amarelinha pintada no chão. Ela relembrou como era uma das brincadeiras preferidas das meninas. Muitas dessas brincadeiras estão sendo consideradas em processo de extinção. Não restam dúvidas de que o aumento da obesidade infantil tem relação direta com o sedentarismo e alimentação industrializada, rápida e fácil. A maioria das brincadeiras de rua envolvia corridas ou algum tipo de exercício físico: bolinha de gude tinha que andar, agachar e levantar; pega-pega, polícia e ladrão eram de pura corrida; esconde-esconde tinha que correr para se esconder e voltar mais rápido que o que ficou batendo cara e procurando os outros (com a cara na parede contando), para se salvar; jogo de taco era também de ação; futebol na rua, usando pedaços de tijolos, garrafas, chinelos para fazer as marcas do “golzinho”; carrinho de rolimã; queimada com bola. Tem um história interessante sobre queimada,  nessa época, eu estava tentando fazer malabarismo com três discos de borracha, já tinha conseguido com dois, tanto treinei que consegui fazer com três discos de borracha, depois, na rua, ficamos jogando o disco de borracha, um para o outro, como se fosse um frisbee, pensamos que nós poderíamos usar os discos de borracha para brincar de queimada, muito mais fácil de jogar do que uma bola,  eu e meu primo emprestamos vários desses discos de borracha do nosso tio, que era técnico em eletrônica, esses discos de borracha protegiam os toca-discos. A ideia deu muito certo, vários discos de uma vez, em dois times, na rua, em qualquer parte do corpo que os discos de borracha atingissem, o jogador era eliminado. Era preciso abaixar, pular arquear-se, parecia Matrix, quando vinha com pouca força, dava para segurar com a mão. O jogo ficava tenso quando os companheiros de equipe eram eliminados, ficando, às vezes, um contra três. Para ficar mais justo, criamos uma regra, se um jogador ficasse sozinho de um dos lados, tinha direito de usar um cabo de vassoura para interceptar os muitos discos que eram atirados por três jogadores, ao mesmo tempo. Era uma borracha maciça, quando pegava nas costas doía mesmo, onde pegasse doía, mas, nas costas, era onde mais doía. Às vezes, o disco era lançado à frente do adversário, antecipando o movimento, numa sequência que seria atingido, não importa o quando corresse. Nessa mesma época, eu voltava da escola e achei um pneu de caminhão jogado na calçada, levei para casa, começamos a entrar dentro do espaço vazio, e ser rodados de cabeça para baixo. Pensei, depois, será que consigo andar em cima desse pneu, de todos que tentaram, só eu e um amigo conseguimos, começamos a disputar, para ver quem andava a maior distância. O avô dele tinha um barril, pensamos, será que dá para andar em cima de um barril também, começamos a disputar em cima de um barril. Foi só juntar uma coisa com a outra, eu pensei: Se eu andasse em cima do pneu de caminhão ou no barril fazendo malabarismo com os três discos, será que consigo. Com esse grau de dificuldade a mais, eu consegui, pelo menos no bairro, ser o único a fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Meu pai chegou a dizer que eu tinha vocação para ser malabarista. Não fazia para aparecer, fazia por ser difícil, pelo desafio, a gente se concentra, não presta atenção se tem alguém olhando. Era pura concentração, qualquer distração era queda mesmo. Eu inventei, por essa época, de andar plantando bananeira. Inventamos de pular do segundo andar de um sobrado, que estava sendo construído, em cima de um monte de areia que estava sendo usada na construção. Aproveitando essa mesma areia, colávamos um pneu perto da areia outro longe, na rua, para pular a distância entre os dos pneus caindo na areia. Nem sempre essas ousadias terminavam bem, ao tentar pular uma rampa com uma bicicleta, não só tomei um tombo, como a bicicleta caiu em cima de mim, cheguei em casa mancando, e os amigos trazendo a bicicleta,  por milagre, eu nunca quebrei um osso. Creio que se aprendia a cair, foi assim que não quebrei nenhuma costela, quando me desequilibrava do pneu e caia no chão. Noutra vez, eu tive uma ideia artística para fazer na rua, comecei a desenhar um tigre no asfalto, era um desenho de uma camiseta, que a vizinha vendia, pintada à mão, desenhei um tigre enorme, usando um pedaço de tijolo. Um colega que estava junto achou legal. Anos depois, eu levei uns desenhos, feitos no sulfite, para o irmão de um conhecido ver, ele trabalhava numa fábrica de painéis. A primeira coisa que ele disse foi que lembrava de ter me visto desenhando o tigre no asfalto, anos atrás, eu devia estar tão concentrado, fazendo o desenho, que nem vi quem estava olhando. Três posts nem chegam perto de contar tudo de bom e emocionante. Foi essa foto do post que me inspirou a escrever essa trilogia que começou nos dois posts anteriores: telhados, altura, árvores, infância. Foi uma infância fantástica, por um contexto histórico e tecnológico, ela dificilmente será vivida por gerações futuras. Claro que eu fui da geração que pegou os jogos de videogame que podiam ser jogados em casa, mas tive a sorte de vivenciar todas as brincadeiras de rua que os meninos gostavam, até aquelas que inventamos. Hoje é raro ver as brincadeiras de rua, o termo que retrata bem a realidade é que elas estão desaparecendo, resumindo, extinção. É certo que há um saudosismo, muitos que não viveram essa época devem sentir saudade, assim como de épocas que não vivemos. Os professores de educação física foram os primeiros a perceber que as novas gerações são mais fracas e menos resistentes que as anteriores, quando se pratica esportes e exercícios, também mais sedentárias e obesas. Casos de diabetes e hipertensão que só apareceriam anos depois, estão tornando-se mais precoces e frequentes. Como é utopia pensar que as brincadeiras de rua voltarão, a realidade é que a prática de esporte deveria ser incentivada desde cedo. A internet e os games devem contribuir, num futuro próximo, já existem testes para jogos nos quais uma esteira circular é usada, e os movimentos nela, em qualquer direção, são replicados no avatar ou personagem do videogame. O videogames que exigem movimentos físicos dos jogadores, com sensores de movimento, já existem faz algum tempo. O fantástico da internet é que uma excelente ideia pode ser compartilhada com o mundo inteiro, pode inspirar outros a melhorar aquela ideia ou inventar soluções alternativas e melhores para um mesmo problema. Não só ideias, mas emoções, sentimentos, histórias. As brincadeiras de rua serão extintas, no mundo real, mas jamais esquecidas nessa consciência virtual universal que se chama internet. Correr descalço pela rua, só pela liberdade, tomar sol no rosto, parecia que o Sol não queimava a pele (mas queimava), naquela época, tomar água da torneira da rua, do tanque de lavar roupas, para poder voltar mais rápido para brincar, sem precisar entrar dentro de casa, ralar-se em muitas quedas. Minha infância foi fantástica. Com esse post, eu encerro a trilogia que destoou bastante do propósito do blog, mas estou feliz por ter deixado esse registro. Pensei na ideia de contar algumas dessas histórias com narração e postar no canal do Youtube, mas não é uma promessa é um projeto para um futuro distante.

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